
Foto de Arnaldo Bonsch, 1983
AUTORETRATOGRÁFICO
Não sei se Rudi Böhm teve muita infância, pois ela foi logo enquadrada como uma fotografia. O percurso de sua vida também: são riscos de conteúdo dentro da moldura. Moldura do quadrado gráfico, moldura do movimento visual, moldura do humano próximo.
Hoje estou convencido de que o Rudi teve infância, uma boa infância. Aliás, uma infância que nunca acabou. Só o conheci sorrindo. E todos sabemos que só teve uma boa infância quem é capaz de sorrir.
A essa alegria de Rudi se acrescenta uma altivez humilde. Isso quer dizer que ele é capaz de rever, ver de novo sem se constranger. Rudi, além do olhar alegre, do olhar estético, tem um olhar construtivo, o que é extremamente profissional. Em nossos contatos na TV Cultura nunca senti qualquer constrangimento em discutir, pedir de novo, conferir o objeto criado com seu destino específico. Rudi sabia chegar lá: ao devido e ao necessário.
É muito raro um artista com sua bagagem ser tão aberto.
Essa generosidade de que resulta uma grande liberdade tem origem no rigor e na coerência de seu trabalho. Suas primeiras obras, que se confundem com o primeiro emprego, fato inesquecível na vida de qualquer homem, foram fotográficas, não fotografias convencionais, mas fotografias gráficas, verdadeiros anagramas compostos apenas de imagens. Essa alfabetização conferiu a Rudi uma sintaxe gráfica que rivaliza com sua própria natureza.
Por isso mesmo, a segunda fase lhe proporciona o encontro com o grafismo que está fora da fotografia e que é apenas apreendido por ela. Isso porque a sintaxe que está dentro de nós também está sempre fora de nós. O olhar enamorado transita pelo mundo para encontrar a si mesmo.
A última parte desse autoretratográfico não poderia ser outra: o outro.
Isso parece óbvio, mas é o mais difícil: descarrilar da grafia neutra para a ortografia dos sentimentos. Essa ortografia são os amigos, não como modelos argentários da moda, mas como modelos essenciais da vida.
Por ter amigos, por ter traço e sorriso, Rudi é único.
O único retrato de sua trajetória.
Jorge da Cunha Lima